quinta-feira, 29 de maio de 2014



NA LAGOA DA PAMPULHA

O fato que comoveu o país não me saiu da cabeça. Tanto que esta noite eu sonhei com o bebê que foi jogado na lagoa dentro de um saco plástico.
Um saco de lixo, preto. Deus! Preto da cor da morte.
E que sorte!!! ... A encontraram. A menininha sobreviveu.
Dizem os noticiários que ela está muito bem de saúde, apesar de ter ficado em contato com a água contaminada.
Jornais do exterior estamparam a notícia trágica e absurda.
Uma mãe carrega em seu ventre por nove meses uma criança, a coloca no mundo e a joga num lago para que morra. Com tantos casais em filas de espera para conseguir uma adoção.
Conheço um casal que espera há uns dois anos.
Tão absurdo tudo isso e tão doloroso.
Mas vou contar do meu sonho. Nele eu estreitava nos braços a nenenzinha e ela choramingava.
Eu a chamava de Ana Lucia. Não sei por que razão, mas acordei com o sonho na cabeça. Com a sensação de estar apertando em meus braços um ser tão indefeso.
Tenho a certeza que a vida desta menina será maravilhosa, porque ela já é uma vencedora aos dois meses de idade. E venceu algo terrível.
Que sorte que a resgataram com vida! Sei que vai ser muito difícil apagar aquela imagem do senhor que a resgatou abrindo o saco plástico. Vou ter isso diante de meus olhos por muitos dias.
Tomara que o casal que vai adotá-la entregue todo o amor e carinho que ela merece.
Vi a fotografia na Net e também vi as imagens nos noticiários de TV. Mas eu a senti em meu colo esta noite e foi uma maravilhosa sensação.
Estarei sempre torcendo por aquela pequenina criatura. Muito mesmo. E estarei sempre rezando para que cena como essa não se repita.

sonia delsin


AS PERNAS CURTAS DA MENTIRA

Laura entrou naquela sala por pura solidão.
Cinco da matina costumava lhe bater um aperto no peito. Uma angústia...
Conversar com alguém... distrair-se. Levantar-se... porque a cama parecia ter espinhos...
Descobriu a net e era uma forma de afogar suas mágoas. Tem quem se refugie na bebida, no cigarro. Tem quem crie rituais para fugir desta fera que ruge antes que o dia nasça: a solidão.
E ela estava sozinha há quase um ano. Longos trezentos e tantos dias em seu canto a lamber as feridas.
Estava mais do que na hora de cicatrizar tudo e recomeçar o caminho.
Fazia amigos pela net, mas queria mais do que amizade. Buscava um novo amor, um namorado, alguém para lhe colorir o cotidiano.
Numa das salas encontrou alguém que lhe despertou algo novo. Ele contou que era viúvo e algumas coisitas mais... ela falou que buscava um namorado, alguém que lhe desse sentido a vida.
Bem, foram pra caixa do MSN e papearam mais um pouco. A descoberta um do outro... as conversas que podiam evoluir ou não.
Mas cada qual tem seu compromisso e os dois despediram-se ficando sem reencontrar-se por vários dias.
A net pode ser um ponto de encontro, mas tem desencontro também, porque ninguém fica vinte e quatro horas on-line. Quando um entra o outro sai e por aí vai.
Os compromissos de cada um e coisa e tal.
Numa manhã viu que o nick atraente estava on-line no MSN.
Cumprimentaram-se e começaram as conversas.
Ele perguntou novamente seu estado civil e Laura confirmou. Antes que ela perguntasse, ele estava dizendo que era separado e...
Laura não diria que ele estava mentindo, ou tinha mentido da outra vez. Ela simplesmente ficava na sua e dava cordas para que a conversa se estendesse. Só que, muito mais cuidadosa. Afinal ele caíra na própria mentira. Quantas outras mentiras não diria mais...
E ela pensava antes ainda que o sol nascesse: É, dizem que a mentira tem a perna curta. Ninguém consegue andar muito com ela.
Não fora sincero o nick lindo e isto a desencatara um pouco. Não poderia ser um amigo, já que não poderia confiar nele. Não poderia ser o seu novo amor, porque os alicerces de um relacionamento devem se basear numa fundação firme. Quando já se começa alguma coisa com mentira tem tudo pra dar errado.
Quando desligou o pc ela pensou que ele devia ter seus motivos para mentir. Achou até que era um homem casado.
Bem, Laura, tinha mais o que fazer do que ficar pensando naquele estranho.


sonia delsin


DONA MORTE E DONA VIDA

Dona morte começou a me rondar. Encontrou-me fraca e queria se aproveitar.
Eu a vi me rondando. Estava me entregando. Pouco estava me importando. Mas um acontecimento veio me mostrar que a ela eu não podia me entregar.
Tudo de repente podia mudar e só dependia da minha forma de encarar.
Eu a vi várias vezes tão perto de mim. Quase me falava ao ouvido e só se afastava ao ouvir o meu gemido.
Ela devia perceber que uma força, mesmo tênue, me chamava para viver.
Dona morte só se afastaria quando à dona vida eu conseguisse me agarrar.
O que me daria esta força pra continuar?
Algo aconteceu e vou aqui lhes contar.
O que me salvou foi o brilho de um olhar.
Um dia meu filho estava a estudar e eu entrei no seu quarto para lhe falar.
Ele ergueu os olhos do livro e me puxou para um abraço. Com seus braços fez um laço e nada me falou. Seu corpo junto ao meu coladinho ficou.
Ficamos assim um bom tempo. Um sentindo o calor do outro, o hálito. Nossas mãos se estreitaram e por nós falaram.
Eu tremia por dentro e por fora. Sabia que se continuasse como estava acabaria indo embora.
O amor que nos unia era tão grande e naquele instante eu percebi o quanto ele ainda precisava de mim.
Despertei naquela hora. Eu não podia ir embora.
Acariciei seus cabelos negros, alisei suas sobrancelhas de veludo, beijei suas pálpebras cansadas. Contornei com meu dedo sua boca bonita e pensei que devia ficar um bom tempo ainda ao seu lado.
Meu filho amado. Nem sabe, mas me salvou de mim mesma.
Eu, que me achava um peso morto neste mundo, me senti importante de novo. Alguém precisava de meus carinhos, de minhas palavras. De meu abraço.
Eu não me entregaria à morte. Não deixaria um filho à própria sorte.

sonia delsin


A AVE DO AMOR POUSOU

A ave do amor pousou no meu coração e eu não entendi de imediato, pois era naquele tempo um frágil filhotinho que necessitava de todo meu carinho.
Amei de forma incondicional este ser delicado e tão especial que a partir de então estaria sob os meus cuidados.
Era tão imatura e não entendia direito o que se passava, mas uma coisa compreendia muito bem. Que o amava intensamente e nós dois teríamos um longo trajeto a seguir. Era o caminho da evolução de duas criaturas.
“Eu” teria que crescer no sentir e no entender. Sim, entender os reais motivos de estarmos aqui neste planeta um pouco hostil, um pouco acolhedor.
“Ele”... bem, vou contando... vou começar do começo.
Aguardava com tantas expectativas em minha vida este ser que meu corpo abrigava e meu coração sem conhecer já amava.
Dias antes de sua chegada aqui neste mundo eu tive um sonho ruim e acordei desesperada.
Ele estava se desenvolvendo dentro de mim, quase na hora de nascer, e eu sonhei que a criança que estava vindo era desprovida de visão física.
Um filho cego? Deus! Aflita como estava fui procurar minha mãe que morava perto. Corri em busca do colo que só ela podia me dar. Ela me falou que muitas mulheres preocupadas demais costumam ter destes sonhos e me recomendou que esquecesse e tratasse dos últimos detalhes. Falou que eu devia continuar aguardando a chegada de meu filho com o coração leve.
Sei que ela quis me tranqüilizar e tratei mesmo de esquecer.
O quartinho que eu estava preparando para ele estava lindo. Tudo em amarelinho, porque eu sentia no coração que esta cor o agradaria.
Bem, chegou o dia de seu nascimento. Talvez nenhum outro dia tenha me marcado tanto. Doze badaladas na igreja matriz da cidade marcaram sua chegada e quando me mostraram o meu filhinho eu comecei a chorar como se ainda fosse uma criança. Ele era lindo e tinha uns olhos de matar. Lindos, enormes. Estavam abertos e a claridade não parecia incomodá-lo. (Esta sensação jamais vou apagar).
Fui encaminhada para o quarto, ele para o berçário. O que eu mais queria era tê-lo junto a mim, mas não era permitido.
Então eu ficava olhando o teto e via aqueles olhos castanhos dançando.
Olhos lindos demais e marcantes.
Eu ouvira dizer que as crianças de antigamente demoravam um tempo para abrir os olhos, mas como os tempos mudam ficava sem saber o que pensar. Meu filho já nasceu de olhos arregalados. Como sempre fui de viver meus conflitos comigo mesma nada comentei com ninguém. Minha mãe diria que eu estava vendo chifres em cabeça de égua e os outros poderiam dizer que eu era uma moça assustada com a maternidade.
Bem, em poucos dias estávamos em casa e eu o curtia intensamente. Afinal era meu primeiro filho, o tão esperado.
Percebi que havia algo com seus olhos, mas como ele reagia à claridade, isso me tranqüilizava um pouco. Cego ele não era.
Porém, como existe um ditado que diz que coração de mãe não se engana...
Lá no fundo algo me dizia existia um problema em sua visão e eu queria tirar todas as minhas dúvidas.
Por pura insistência minha ele foi visto por um oftalmologista antes do terceiro mês de vida e foi constatado que ele era portador de uma miopia altíssima e de um problema nas retinas. Problema muito sério.
Difícil falar de uma criança com visão subnormal. É uma dificuldade e tanto, pois ele precisou se adaptar a um mundo que enxergava à sua maneira.
Muitas vezes pensei que o mundo não está preparado pra canhotos e para os portadores de deficiências físicas. Senti tudo isso na pele vendo meu filho encontrando tantas barreiras. Ele passou por muitas dificuldades mesmo. As pessoas na sua maioria são preconceituosas e não parecem compreender que não nascemos para sermos todos iguais.
Com sua pobre visão aquela criança maravilhosa tinha uma forma peculiar de enxergar o mundo e o demonstrava a cada instante. Estou para conhecer alguém mais otimista e mais afetuoso.
Se existe um nome que o define este nome é superação.
Ele sempre tinha à sua frente um obstáculo, uma barreira que não o intimidava, felizmente. Sempre foi um guerreiro.
Mas meu filho foi crescendo precisando de muito mais cuidados.
Nos estudos foi lastimável tudo que aconteceu. Como o ensino está aquém das necessidades de uma criança com visão subnormal!
Ele sempre teve algo a seu favor, eu sempre estava ao seu lado amparando-o da forma que ele mais necessitava. Ajudava-a procurando não demonstrar meus cuidados excessivos, pois sabia que desta forma podia fazê-lo sentir-se inferiorizado e incapacitado. Ele precisava de sua força interior, mas necessitava do apoio dos pais no sentido de incentivá-lo, encorajá-lo.
Acompanhei seus passos dando o melhor de mim, nos estudos fui o seu esteio. Muitas vezes fui um pouco os olhos que ele necessitava, até que a vida por si mesma foi colocando cada coisa em seu lugar.
Eu digo que cresci no sentir, porque na pele provei muitas dores, mas ele cresceu de uma forma intensa como ser humano. Mostrava-nos a cada dia que um bravo não espera milagres, mas busca os milagres. Faz acontecer.
Hoje em dia este meu filho amado é um rapagão de quase 26 anos e já está casado. Construiu um lar e vive muito bem com a esposa.
Ele veio nos mostrar tanta coisa. Pena que algumas pessoas não entenderam suas mensagens. Eu digo que ele é a ave do amor. Uma ave que se instalou no meu coração, que fez sua morada.
Quando pousou, tão pequenino, tão fragilzinho, nunca podíamos imaginar o que ia se tornar um dia.
Ainda não compreendo tudo que preciso compreender, mas ele foi um caminho. Sou apaixonada por esta ave querida que veio me mostrar o sentido da vida.
Outras pessoas o ajudaram muito em sua trajetória. O pai que sempre o amou intensamente; o irmão que o quer tão bem; os avós que sempre o adoraram. Tios, tias, primos, primas e amigos. Enfim, a todos ele conquista com seu carisma.
Na família ele é o ícone. É a referência.
Muitas vezes recordo passagens que tivemos. Eu sentia sob meus pés cada pedra de seu caminho. Cada espinho me feria. Cada vitória comemorava com a mesma alegria.
Hoje, ele é o herói de tantas batalhas e eu sou a mãe que o admira, que o acompanhou passo a passo e que absorveu a sua dor e a sua felicidade.

Minha ave do amor. Como eu a amo!  Palavras jamais poderão contar de um amor tão grande.

sonia delsin



MANDIOCA, LEITE E AÇÚCAR

Tem coisas que não dá pra esquecer.
Pai, você era uma figura!
Era uma coisa mais pura.
Tão autêntico, tão seu Mário! Nosso querido italianinho.
Quando ia dando nove horas você pedia pra minha mãe cozinhar um pouco de mandioca e mal ela ficava pronta já queria comer.
Então a nossa querida D. Lina preparava um “pratão” com leite e açúcar de montão.
Você se deliciava.
Eu ficava olhando e me perguntava: será que é bom?
Um dia provei e gostei.
Você era o que era. Sem adornos. Era um homem simples que amava natureza. Como um menino se encantava com a beleza.
Hoje bateu uma saudade. Cozinhei mandioca e fiquei pensando naqueles tempos.
Pensei que você também era um poeta. Não um homem das letras. Não escrevia, nem lia, mas como se comovia!
E falava. Discursava sobre a beleza das flores. Dizia que tudo tinha uma ciência.
Você não tinha paciência. Era nervoso, inquieto. Queria tudo correto.
Mas o homem agitado que era se deitava para observar o desenvolvimento de uma caixa de marimbondo. E falava das teias de aranha... me contava dos veios da terra. Mostrava-me os laranjais floridos e os cafezais. Falava dos animais.
Tantas vezes sob as murtas nós ficamos a conversar. Eram longas conversas que me punham a refletir.
Pai, você enfeitou tanto o meu existir.
Um dia você partiu e isto tinha que ser nos meus braços.
Você se foi como quem quer ficar e disso eu vou sempre me lembrar.
Eu senti o quanto lhe doía me deixar.
Suas últimas palavras no meu ouvido sempre vão ressoar.
Até o último instante de amor e compaixão você quis me falar. Parecia que você já sabia os caminhos que eu ainda ia pisar.

sonia delsin


JABUTICABEIRA NA SACADA

Quando vi o vaso grande com a jabuticabeira não imaginei que tão cedo aquela árvore produziria. E produziu.
Chupei algumas frutas e como estavam saborosas.
Depois, os sanhaços descobriram e fizeram a festa.
Beliscaram todas as frutas com seus biquinhos.
E não as chupamos mais.
Mas a jabuticabeira está lá na sacada e vai produzir mais.
Não sei quando chegar ao teto o que vai fazer e se vai chegar, mas creio que sim.
É tão lindo vê-la na sacada e ainda mais quando está carregada de frutas madurinhas.

sonia delsin


POBRES CRIANÇAS

Ontem um fato me impressionou. Foi à noite, na Universidade Aberta onde faço um curso.
Estávamos, o professor e eu conversando no pátio quando três crianças se aproximaram e começaram a conversar conosco.
Estavam insuficientemente vestidas e o frio estava intenso.
Perguntei a razão de estarem fora de casa e com roupas tão finas naquele horário e responderam que estavam usando as roupas que foram à escola à tarde.
Eram duas crianças lindas e uma pré-adolescente. Irmãos.
No decorrer da conversa fiquei sabendo detalhes.
A mais velha é que ia contando tudo. Falou que teriam que ficar ali até as vinte e uma horas porque a mãe não estava em casa.
Contou que fizera um doce de mamão e que tinha ficado ruim. Falou que gostava de “miojo” como a mãe fazia. Eu quis saber como era e ela explicou que colocava massa de tomate pra dar a cor vermelha.
O menino ia criticando algumas coisas e ela rebatendo na tentativa de defender a mãe.
Em certo momento me doeu por dentro.
O garotinho falou: Tia, eu queria ter uma blusa de lã bem quentinha. Estou com frio demais, veja como está fria minha mão.
Estava uma pedrinha de gelo mesmo.
Menino bonito, um ar inteligente.
Daí foi que ele falou a frase que mais me chocou. Falou que quer ser rico, que sonha em ganhar um prêmio de loteria.
Deus, crianças falando algo assim é chocante demais. A mais velha os adora. Dava para notar que queria todo o tempo protegê-los. Puxava pra baixo as roupas dos irmãozinhos. Mas de nada valia. O menino vestia um bermudão. A menina uma calça que ia até o meio da canela. Nos pés eles usavam chinelo havaiana.
Tivemos que voltar pra sala de aula. O professor e eu ficamos cabisbaixos, impotentes e tentando entender.
Talvez eu os veja outras vezes por lá, ou não. Francamente não sei, mas parecem morar por perto.
Tenho passado grande parte do dia pensando neles. A menorzinha era muito quietinha e chupava o dedo todo o tempo.
Deus, doeu! Está doendo.

sonia delsin